terça-feira, junho 21, 2005

Eu já andava meio enamorada pelo Walcyr Carrasco. Na semana passada peguei esse livro na mão, e me diverti com algumas crônicas que ele escreveu ali. Fiquei pensando: compro ou não compro? compro ou não compro? compro ou não compro? e não comprei...
Hoje eu vejo essa crônica na vejinha. Se eu já estava enamorada por ele, depois de ler ela, eu posso dizer que estou completamente apaixonada ...


Crueldade de rotina

Nos últimos tempos, tomei certa implicância pela história do politicamente correto. Para mim se tornou uma espécie de censura. Não se pode falar disso ou fazer aquilo. Como escritor, me sinto tolhido. Dia desses, porém, recebi um email de um leitor que mexeu comigo. Dizia quanto se surpreendeu ao constatar que sou consumidor de fígado de ganso, em forma de patê ou outras iguarias. Lembrava como sofrem as aves para ganhar um fígado gordo e saboroso. Minha primeira reação foi:

- Puxa, não posso nem comer em paz?

Depois, parei para pensar. Fui conversar com um amigo, Franco. Ele me explicou:

- Os gansos são engordados á força para ficar com o fígado enorme. A ração é despejada em sua boca por uma espécie de funil.
Arrepiei-me. Ele continuou:

- Muitos criadores pregam as patas dos gansos no chão, para que não se movam e engordem mais ainda!

Não era uma informação recheada de detalhes técnicos. Lembrei-me de um francês cuja mulher, brasileira, ameaçou separar-se quando ele começou a produzir o patê de froie, num sítio próximo à Fernão Dias. Não suportava a crueldade. Também fiquei sabendo que nos Estados Unidos já se programa a proibição da venda. Resolvi: não como mais!

Fiquei pensando: quantas coisas consumo sem me deter a origem? Muitas vezes dou palestra em escolas sobre um livro para jovens de minha autoria , que fala sobre drogas. Uma das questões que coloco é a responsabilidade social:

- Quem usa uma droga, mesmo a considerada leve, tem a obrigação de lembrar que, para ela chegar as suas mãos, passou por uma cadeia de ilegalidades, roubo, violências, talvez mortes. Assim, o usuário é também um cúmplice.

Isso não vale também para os outros aspectos da vida? Jamais gostei de casaco de pele. São lindos é verdade. E ... os bichos? Caçados, criados em gaiolas ...

Durante as últimas décadas fomos nos distanciando da origem do que comemos. Certa vez levei um garoto a um sítio e lhe mostrei um frango. Ele espantou-se: só conhecia os de supermercado. Ninguém mais vê galinhas, vacas, porcos a não ser em filmes ou eventuais viagens ao campo. Um grupo, entretanto, já começa a se preocupar em saber como o alimento é produzido. Quem já comeu sabe: um frango caipira, criado ao ar livre, tem sabor muito melhor que os de granja, aprisionados. Alguns são alimentados de maneira tão artificial que a carne tem uma textura estranha. Lembra papelão.

E as espécies ameaçadas? Certa vez estava em um jantar elegantíssimo em Manaus. Serviram tartaruga. Uma antiga miss Brasil, Adalgisa Colombo, estava sentada ao meu lado. Cruzou os talheres e avisou:
- Não como!
Uma outra convidada sorriu:
- Que exagero! Já está morta mesmo!

Encheu o prato. Eu já estava me servindo. Tomei conciência. Parei.

Afinal, não vivo falando contra a extinção das espécies? Portanto, seria indecente compartilhar o menu.

Não sou e nunca serei um sujeito que vai as raias da loucura com a história do politicamente correto. A vida é uma cadeia de espécies que se devoram entre si. Mas existem maneiras de criar animais sem crueldade. Também existe muita comida boa nesse mundo. Por mais que eu viva, não experimentarei tudo o que o pecado da gula proporciona. Há coisas em que acredito. Não posso agir como se minhas idéias não tivessem nada a ver com a realidade.

Não quero ser cúmplice do sofrimento animal. A dor, de alguma forma, ficará impregnada na refeição. Acredito que seres trocam energias entre si. Sinceramente, não quero esse tipo de energia dentro de mim. De agora em diante, bani a crueldade do meu cardápio.

Walcyr Carrasco